Por Tatiana Merlino
“O que as violações ocorridas durante a ditadura militar tem a ver com a segurança pública hoje?”, questionou Luiz Eduardo Soares, durante audiência pública da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”, ocorrida nesta quinta-feira, 28, na Assembleia Legislativa de São Paulo.
“Tudo”, ele mesmo respondeu. “O Brasil continua torturando e matando pobres e negros, tidos como inimigos internos, suspeitos. Qual conexão e referências à ditadura que praticava violações de forma sistemática com prática ainda persistem nas instituições policiais? [São práticas que] não envolvem todos, mas incluem contingentes numerosos, que se sentem autorizados a perpetrar brutalidades contra inimigos internos”.
A autorização para cometer as violações, acredita Soares, não é dada exclusivamente ou necessariamente pelos superiores dos agentes policiais. É dada também pela sociedade, “que aplaude as ações, ou se omite diante dos fatos”, e governos, “muitas vezes por omissão” outras por “intervenções proativas” que acabam tolerando e se tornando cúmplice dessas práticas.
Há, também, a responsabilidade do Ministério Público, explica Soares, que deveria zelar pelo controle externo das atividades policiais, mas “por omissão ou ação insuficiente acaba se tornando cúmplice”. A Justiça, explica “na sua passividade aristocrática, consagra e abençoa a continuidade dessas práticas”.
Violência estrutural
A manutenção de práticas de tortura e assassinatos cometidas pelos agentes do Estado mesmo após a transição da ditadura para a democracia, acredita o professor, é resultante de um processo histórico do Brasil. “A ditadura não inventou a violência institucional. Ela é parte da nossa história, assim como o racismo estrutural, a escravidão e o autoritarismo. Infelizmente eles sempre fizeram parte da nossa história”.
O que a ditadura fez, aponta, “foi deslocar o foco para os militantes de oposição”. Pois, antes disso, o foco eram os negros e pobres. E depois da transição, seguiu sendo os negros e pobres, “dando continuidade ao processo”.
Ou seja: “A ditadura não inventou a violência policial, ela a qualificou, a tornou prática organizada de política de Estado”.
Na transição para a democracia, “embora tenhamos entoado hinos e glórias ao Estado democrático de direito”, aponta esqueceu-se que a transição passou de forma insuficiente pelas áreas de segurança pública, “que acabaram não sendo submetidas a um processo de transformação”.
A maneira brasileira de fazer a transição, de forma negociada, defende o antropólogo “jogou para debaixo do tapete muitas mortes e crimes. Isso não se faz impunemente”.
Assim, entre os elementos de continuidade da ditadura existentes na democracia brasileira, está a lógica de que os fins justificam os meios.
“E à medida em que a inadmissibilidade da tortura não foi submetida a uma revisão profunda do ponto de vista ético, a sociedade aplaude, e os profissionais continuam adotando as mesmas práticas”.
Aulas de tortura
De acordo com o antropólogo, até 1996, na Polícia Civil do Rio de Janeiro, havia aulas de “como bater”. “Não eram aulas de defesa pessoal, que são indispensáveis e sim aulas de como bater em alguém”.
O Bope [força de operações especiais da PM do Rio de Janeiro], por sua vez, oferecia aulas de tortura até 2006. “Quer dizer, não é resultado de uma veleidade ideológica de um ou outro, mas sim um procedimento institucional”.
No Rio de Janeiro, explica Soares, de 2003 a 2012, 9646 pessoas foram mortas em ações policiais. Desse universo, não se sabe quantas são mortes extra-judiciais. “Ninguém sabe porque não há investigação”.
Outro dado apresentado é que entre os casos de resistência no Rio de Janeiro, menos de 3% deles são investigados.
“O MP raramente se debruça sobre esses casos, apenas quando há envolvimento de pessoas de classe média e quando isso ocupa espaço na mídia”.
Na opinião do professor da UERJ, o que acontece é uma naturalização da falta de informação e ausência de procedimentos institucionais que visem com rigor a suspensão de tais práticas. E, para ele, a naturalização é o processo de autorização social para tais procedimentos.
“Por isso a importância do caso Amarildo. Ele deu rosto, nome, endereço, classe social e espaço territorial a um processo vago, genérico, sem biografia e que não gerava empatia”.
Luiz Eduardo Soares sustenta que não é possível pensar em segurança pública sem que as instituições responsáveis por provê-la cumpram a lei, respeitem a Constituição e os tratados internacionais endossados pelo Brasil, “de modo a merecer a autoridade que o Estado de direito lhe confere”.
Campeão em mortes
A exemplo da gravidade do problema da segurança pública no Brasil, Soares lembrou que por ano, no Brasil, há 50 mil homicídios dolosos.
“É uma barbaridade, um número monstruoso em termos absolutos, nos colocando na segunda posição do mundo, atrás apenas da Rússia”.
Desses 50 mil casos, pesquisas apontam que em média, apenas 8% são investigados. Ou seja, 92% dos homicídios dolosos seguem impunes.
Junto a isso, o país tem a quarta população carcerária do mundo: 550 mil presos, num crescimento acelerado em relação a 1996, quando o número era de 140 mil.
“Estamos atrás dos EUA, China e Rússia, mas numa competição que tende a nos elevar nesse campeonato mórbido”.
Os que cumprem pena por homicídio representam 12% do universo penitenciário, 40% estão em prisão preventiva e dois terços cumprem pena por crimes contra o patrimônio ou tráfico de drogas. 64,6% são negros e de baixa escolaridade e renda.
“Não precisa ser sociólogo ou estudar especificamente o tema para concluir que o que está acontecendo é a aplicação seletiva de filtros legais. Estamos projetando a legalidade a partir de refrações, como a classe social, cor da pele, território. Isso significa que os profissionais responsáveis pela acusação e julgamento são todos cúmplices de um grande um complô racista e voltado contra os pobres de forma consciente? Não, isso significa que o país é profundamente racista e classista”, analisa Soares.
Apesar de o tema ser tão importante, pondera o professor, o Brasil nunca discutiu a questão coletivamente, “isso nunca esteve na agenda pública. Dificilmente a sociedade se debruça sobre o modelo policial”.
O que fazer?
Soares lista cinco pontos que acredita ser fundamentais na arquitetura institucional da política de segurança pública do país: aumento da responsabilidade da União Federal, o empoderamento dos municípios, ciclo completo, carreira única, revisão da estrutura militar.
“Não devemos discutir a questão da desmilitarização isoladamente, ainda que ela seja indispensável”.
Sobre a defesa da carreira única dos policiais, Soares lembra que dois universos convivem na mesma instituição: na PM, são praças e oficiais; e na polícia civil, oficiais delegados e não delegados, “com salários e prestígios diferentes. Por isso, a carreira única me parece imprescindível”.
Já sobre a unificação do ciclo, hoje, há a PM fazendo o trabalho ostensivo e a civil o investigativo. “Precisamos que haja integração”.
Para Soares, não faz sentido a Polícia Militar se organizar à semelhança do Exército. “Isso faria sentido se as finalidades fossem as mesmas, mas não são”.
Entre as tarefas policiais, aponta, há inúmeras delas que são de alta complexidade e que exigem adaptação. “Elas não são compatíveis com uma estrutura rígida”.
Já os confrontos correspondem a um percentual mínimo das atividades cotidianas, e para tal, deve haver unidades organizacionais específicas para confronto, “para atuar dentro da legalidade e respeitando os direitos humanos”.
Segundo ele, a ideia de que desmilitarizar fere os profissionais é absurda.
“Estou falando de eficiência, capacidade de prevenção, profissionais mais valorizados. Não significa desrespeito à hierarquia, nem a ausência dela”.
Questionamento
Durante a audiência, o presidente da Comissão da Verdade de São Paulo “Rubens Paiva”, deputado Adriano Diogo, questionou o coronel Glauco Silva de Carvalho, da área de direitos humanos da Polícia Militar, que estava presente na atividade.
“Por que só a Comissão de Direitos Humanos e a Comissão da Verdade tem um policial anotando tudo que acontece nas audiências, embora tenhamos sistema de gravação? Por que tanto privilégio? Quais são os relatórios que são enviados para comando, a respeito das audiências?”
Logo depois, o presidente da Comissão pediu ao coronel cópias dos tais relatórios feitos pela PM.
Também participaram da audiência o delegado Maximiliano Fernandes Filho, o tenente Francisco Jesus da Paz e a cineasta Luciana Bulamarqui, diretora do filme “Entre a luz e a sombra”, exibido ao final da audiência.
Luciana leu e entregou à Comissão uma cópia de um abaixo assinado defendendo a desmilitarização da PM.
Tatiana Merlino é jornalista, assessora da Comissão da Verdade de São Paulo “Rubens Paiva”